Escuta especializada, depoimento especial e avaliação psicológica de crianças e adolescentes na colheita de informações sobre a violência sofrida

Considerando a necessidade de se evitar a revitimização da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, a Lei 13.431, de 4 de abril de 2017, adotou regras específicas para o tratamento da colheita de informações sobre a violência sofrida


Quando a criança ou o adolescente é vítima ou testemunha de violências, caracterizando, desse modo, um delito, faz-se necessário que participe da persecução penal (Inquérito Policial e Processo Crime), a fim de que possa declarar aquilo que souber sobre os fatos, narrando o que viu ou o que vivenciou.

Tendo em vista a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento,
o legislador editou a Lei nº 13.431/2017, que estabelece um microssistema de normas para oitiva de crianças e adolescentes, estabelecendo metodologia de escuta a fim de assegurar-lhes total proteção, amparada pelo Estatuto da Criança e Adolescente.
Para tanto, a lei veicula dois institutos: a escuta especializada e o depoimento especial.

Apesar de ter sido a lei publicada em 2017, ainda existe incompreensão a respeito dos mecanismos nela veiculados. Há, ainda, especial confusão entre os institutos criados e a avaliação psicológica, que, embora não prevista expressamente na citada norma, é usada em processos penais como mais um elemento de convencimento e esclarecimento dos fatos.
Neste artigo buscamos abordar essas figuras para distingui-las e amparar os operadores do sistema de persecução penal na sua adequada utilização.

Importante salientar que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos e não meios de prova, devendo os operadores do sistema de persecução penal se atentarem aos direitos dessas pessoas, evitando que sofram vitimização secundária. Passemos aos institutos.

A escuta especializada, que é definida no artigo 7º da Lei nº 13.431/2017, tem a finalidade de garantir a tomada de decisões que buscando proporcionar proteção e cuidados à criança ou ao adolescente vítima ou testemunha de violências.

“Art. 7º Escuta especializada é o procedimento de entrevista sobre situação de violência com criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção, limitado o relato estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade.”

Temos aqui uma coleta de informações com vistas a providências de
ordem social (por exemplo: afastar a criança do lar em que possa estar sofrendo abuso, institucionalizar um adolescente que esteja presenciando violências, promover encaminhamento à rede de saúde — física e mental).

A escuta especializada pode ser realizada por todos os integrantes da
rede de proteção: escolas, conselhos tutelares, assistência social e pelos órgãos de segurança pública. Vale pontuar que é frequente a chamada dos integrantes da rede de proteção para serem ouvidos no inquérito, a fim de que possam figurar como testemunhas.

Ressalte-se que, mesmo quando realizada pelas polícias, a escuta
especializada não terá a finalidade de produzir provas para o processo criminal. A finalidade será sempre a proteção social e o provimento de cuidados.

Já o depoimento especial detém o caráter de fonte de prova processual penal. Trata-se da coleta do relato da criança ou do adolescente com vistas à reprodução dos fatos, em busca de elementos que configurem a materialidade delitiva, que esclareçam as circunstâncias em que o crime se deu e sua autoria.

Estabelecem os artigos 8º a 12 da Lei 13.431/2017:
“Art. 8º Depoimento especial é o procedimento de oitiva de criança ou
adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária.
Art. 9º A criança ou o adolescente será resguardado de qualquer contato,
ainda que visual, com o suposto autor ou acusado, ou com outra pessoa que represente ameaça, coação ou constrangimento.
Art. 10. A escuta especializada e o depoimento especial serão realizados em local apropriado e acolhedor, com infraestrutura e espaço físico que garantam a privacidade da criança ou do adolescente vítima ou testemunha de violência.
Art. 11. O depoimento especial reger-se-á por protocolos e, sempre que
possível, será realizado uma única vez, em sede de produção antecipada de prova judicial, garantida a ampla defesa do investigado.
§ 1º O depoimento especial seguirá o rito cautelar de antecipação de prova:
I – quando a criança ou o adolescente tiver menos de 7 (sete) anos;
II – em caso de violência sexual.
§ 2º Não será admitida a tomada de novo depoimento especial, salvo quando justificada a sua imprescindibilidade pela autoridade competente e houver a concordância da vítima ou da testemunha, ou de seu representante legal.
Art. 12. O depoimento especial será colhido conforme o seguinte
procedimento:
I – os profissionais especializados esclarecerão a criança ou o adolescente sobre a tomada do depoimento especial, informando-lhe os seus direitos e os procedimentos a serem adotados e planejando sua participação, sendo vedada a leitura da denúncia ou de outras peças processuais;
II – é assegurada à criança ou ao adolescente a livre narrativa sobre a
situação de violência, podendo o profissional especializado intervir quando necessário, utilizando técnicas que permitam a elucidação dos fatos;
III – no curso do processo judicial, o depoimento especial será transmitido em tempo real para a sala de audiência, preservado o sigilo;
IV – findo o procedimento previsto no inciso II deste artigo, o juiz, após
consultar o Ministério Público, o defensor e os assistentes técnicos, avaliará a pertinência de perguntas complementares, organizadas em bloco;
V – o profissional especializado poderá adaptar as perguntas à linguagem de melhor compreensão da criança ou do adolescente;
VI – o depoimento especial será gravado em áudio e vídeo.
§ 1º À vítima ou testemunha de violência é garantido o direito de prestar
depoimento diretamente ao juiz, se assim o entender.
§ 2º O juiz tomará todas as medidas apropriadas para a preservação da
intimidade e da privacidade da vítima ou testemunha.
§ 3º O profissional especializado comunicará ao juiz se verificar que a
presença, na sala de audiência, do autor da violência pode prejudicar o
depoimento especial ou colocar o depoente em situação de risco, caso em que, fazendo constar em termo, será autorizado o afastamento do imputado.
§ 4º Nas hipóteses em que houver risco à vida ou à integridade física da
vítima ou testemunha, o juiz tomará as medidas de proteção cabíveis,
inclusive a restrição do disposto nos incisos III e VI deste artigo.
§ 5º As condições de preservação e de segurança da mídia relativa ao
depoimento da criança ou do adolescente serão objeto de regulamentação, de forma a garantir o direito à intimidade e à privacidade da vítima ou testemunha.
§ 6º O depoimento especial tramitará em segredo de justiça.”

Para sua execução serão capacitados profissionais, dos quais não se
exige nenhuma formação acadêmica específica. Há, como particularidade, entre outras, dessa forma de se tomar depoimento, a obrigatoriedade de gravação em áudio, o que não é imposto à escuta especializada.

O depoimento especial terá caráter de cautelar de antecipação de
prova quando se tratar de vítima ou testemunha menor de sete anos de idade ou em casos de violência sexual.

Nesses termos, realizar-se-á perante a autoridade judiciária, com o
estabelecimento do contraditório. A intenção da norma é que haja apenas um depoimento especial, apenas uma oitiva. Repita-se que a intenção de tal determinação é evitar que o processo penal seja revitimizador, ao produzir mais prejuízos psicológicos, mais traumas para a criança ou o adolescente que vivenciou violências na qualidade de vítima ou de testemunha.

Não obstante, importante salientar que haverá casos em que a adoção desse sistema poderá se tornar inviável, sendo que isso decorre do fato de o tempo da investigação nem sempre ser passível de compatibilização com as formalidades do processo penal. Poder-se-ia entender, seguindo esse raciocínio, que a criança e o adolescente não poderiam jamais ser ouvidos em sede policial, tais elementos de convicção se perderiam.

Sabemos que situações em que o depoimento especial em juízo
possa implicar perda irreparável para as investigações, deve-se admitir que a coleta do relato se dê em sede policial, desde que atendidos os protocolos específicos de oitiva deste público, estabelecidos na norma em comento.

Por derradeiro, embora não prevista na Lei nº 13.431/17, a persecução penal pode se valer da avaliação psicológica. Os crimes em geral deixam marcas por vezes indeléveis na psique de suas vítimas e mesmo na das pessoas que os presenciam. A avaliação psicológica é uma espécie do gênero perícias a ser necessariamente realizada por psicólogo com a finalidade de identificar esses vestígios psicológicos de um crime.
Trata-se de um processo estruturado de investigação de fenômenos
psicológicos, composto de métodos, técnicas e instrumentos, com o objetivo de prover informações à tomada de decisão, no âmbito individual, grupal ou institucional, com base em demandas, condições e finalidades específicas. O Decreto nº 9.603/19 prevê a possibilidade de realização de perícia psicológica, destacando que mesmo esta deve primar “pela intervenção profissional mínima” (artigo 13, §6º).

Importante destacar, que a avaliação psicológica, ao contrário do que
muitos profissionais acreditam, não substitui a tomada de depoimentos. Como já se pode perceber, ainda que ambas possam usar métodos e protocolos de entrevistas semelhantes (como a entrevista psicológica), suas finalidades são diferentes. E uma não pode influir sobre o outro. Do mesmo modo que não se deve utilizar uma sessão de depoimento especial como método em uma avaliação psicológica, não é possível
que o psicólogo elabore documento psicológico a partir do depoimento especial.

As pessoas entrevistadas são selecionadas pelo psicólogo com o
único intuito de que forneçam elementos para a compreensão dos fenômenos psicológicos que permeiam o fato central. Não serão, necessariamente, as mesmas pessoas selecionadas pela autoridade policial para instruir o inquérito. Além disso, durante as entrevistas, o psicólogo não deve realizar gravação audiovisual com o fim de apresentá-las nos autos. Esta somente pode ser feita mediante autorização expressa do entrevistado, se utilizada como material privativo do psicólogo para posterior análise. A descrição literal de partes dos atendimentos realizados só é permitida quando imprescindível para a análise psicológica.

Vale lembrar que sendo categoria profissional regida por conselho de classe, o psicólogo, em qualquer campo de atuação, deve obedecer às normativas que regulam sua profissão, sob pena de sanção pelo Conselho Federal de Psicologia.

A ciência da Psicologia tem bases epistemológicas próprias, devendo
sua aplicação estar fundamentada em tais matrizes para, desse modo, ser validada em sua cientificidade.

Em síntese, escuta especializada, depoimento especial e avaliação
psicológica são categorias que se diferenciam. A escuta especializada é realizada por integrantes da rede de proteção com vistas a atender às necessidades sociais de proteção da criança e do adolescente, sem ter função processual penal. Já depoimento especial e avaliação psicológica são elementos da atuação estatal de persecução penal.

Considerando ser o objetivo da entrevista o levantamento de informações sobre o fato investigado, em que crianças ou adolescentes figurem como vítimas e/ou testemunhas, cabe a realização do depoimento especial, em que as perguntas a que se pretendem respostas, sejam feitas diretamente ao sujeito entrevistado. Será considerada a literalidade dos dados fornecidos, não cabendo ao entrevistador emitir análise ou conclusão sobre o fato investigado e não havendo emissão de documentos escritos, somente o material gravado por meio audiovisual.

De outro lado, quando se objetivar a compreensão da dinâmica do
fato criminal, cabe ao psicólogo realizar a avaliação psicológica pericial. Nesta, então, as perguntas, ou quesitos, devem ser dirigidas, pela autoridade, ao psicólogo, que responderá ao analisar, com base em seu instrumental técnico-científico, as informações levantadas durante o procedimento da avaliação.

Conclui-se, dessa forma, que esse microssistema de garantias e
normas veiculado pela Lei nº 13.431/17, a par de em muito contribuir com a investigação criminal, tem como objetivo assegurar que crianças e adolescentes sejam devidamente respeitados por toda a rede de proteção e pelo sistema de Justiça Criminal, desde a fase pré-processual, devendo todos os órgãos envolvidos atuar de forma articulada, como verdadeira rede da qual fazem parte.


Referências:

  1. https://www.conjur.com.br/2021-dez-03/questao-genero-escuta-especializadadepoimento-especial-avaliacao-psicologica
    Por: Fernanda Moretzsohn, Patricia Burin e Danielle Cadan
  2. https://jus.com.br/artigos/86665/aspectos-legais-da-escuta-especializada-edo-depoimento-especial

Veja mais artigos em nosso BLOG!

Compartilhe:

Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp
Share on email

Mais publicações

Envie sua Dúvida